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Curso Básico da Linguagem C
Aula 12: Leitura da entrada padrão com 'fgets'
Se, por um lado, a função scanf
é conveniente para ler e converter dados na
entrada padrão, também é preciso considerar os cuidados que ela exige,
especialmente quando lidamos com a passagem dos dados lidos para um buffer
de caracteres (geralmente, criado para receber uma string). A sua principal
causa de problemas é a falta de um controle simples e explícito da quantidade
de bytes que poderão ser escritos na memória. Na função scanf
, todo controle
possível é aquele que escrevemos em sua string de formato, por exemplo:
char buf[10];
scanf("%9s", buf);
Aqui, 9 primeiros bytes lidos serão consumidos, acrescidos do terminador nulo
(totalizando 10 bytes) e copiados para o endereço expresso pelo vetor buf
, que
foi declarado para receber até 10 bytes (incluindo o terminador nulo). Mas,
pode acontecer de, um dia, nós mudarmos de ideia e reduzirmos o limite de buf
,
digamos, para 8 bytes. Isso exigiria uma alteração na chamada de scanf
– o que
pode ser facilmente esquecido!
Aliás, essa é uma das justificativas para o uso de constantes simbólicas em
vez dos chamados números mágicos. Então, é comum que vetores, como o nosso vetor
buf
, sejam declarado assim:
#include <stdio.h>
...
#define BUFMAX 10
...
int main(...) {
char buf[BUFMAX];
...
scanf("%9s", buf);
...
}
E isso tornaria ainda mais arriscada qualquer modificação no tamanho definido
por BUFMAX
.
A função 'fgets'
Segundo sua man page, a função fgets
recebe três argumentos:
char *fgets(char s[restrict .size], int size, FILE *restrict stream);
char s[restrict .size]
- Um buffer para receber os dados lidos;int size
- A quantidade máxima de bytes a serem escritos no buffer;FILE *restrict stream
- Uma estrutura do tipoFILE
representando o fluxo de dados que será lido.
Quando chamada, a função fgets
lê, no máximo, a quantidade de bytes expressa
por size - 1
, inclui o terminador nulo ('\0'
) e escreve esses bytes no buffer.
Por exemplo:
#include <stdio.h>
#define BUFMAX 10
int main(void) {
char buf[BUFMAX];
fgets(buf, BUFMAX, stdin);
...
}
Aqui,
stdin
é uma macro que expande uma estruturaFILE
predefinida com o descritor de arquivos0
(entrada padrão).
De pronto, fica evidente a facilidade que nós termos para alterar o tamanho do
vetor buf
quando necessário: basta alterar a constante simbólica BUFMAX
.
Uma nota sobre o tipo ponteiro para FILE
No nível do sistema, o acesso a arquivos é sempre estabelecido através de uma
estrutura complexa identificada por um número inteiro: o descritor de arquivos,
assunto da aula 10. Então, quando utilizamos chamadas de sistema, como read
e
write
, o fluxo de dados (stream) é passado como o número de um descritor de
arquivos. Por isso, nós utilizamos as macros:
Macro | Significado |
---|---|
STDIN_FILENO |
Valor inteiro relativo ao descritor de arquivos 0 . |
STDOUT_FILENO |
Valor inteiro relativo ao descritor de arquivos 1 . |
STDERR_FILENO |
Valor inteiro relativo ao descritor de arquivos 2 . |
Nas funções da biblioteca padrão, que abstrai outras estruturas de controle
associadas aos descritores de arquivos, os fluxos de dados são passados como
ponteiros para essas estruturas através do tipo FILE *
(ponteiro para FILE
).
Os fluxos de dados padrão também são abstraídos como macros definidas na
biblioteca de funções:
Macro | Significado |
---|---|
stdin |
Ponteiro para FILE associado ao descritor de arquivos 0 . |
stdout |
Ponteiro para FILE associado ao descritor de arquivos 1 . |
stderr |
Ponteiro para FILE associado ao descritor de arquivos 2 . |
O problema da quebra de linha
A função fgets
lê, no máximo size - 1
bytes, o que é ótimo, mas nem sempre
a linha lida terá tantos bytes. Nesses casos, a leitura será interrompida
depois de uma quebra de linha (caractere '\n'
) ou depois de alcançado o fim
do arquivo (EOF
). Ou seja, se a leitura terminar com uma quebra de linha,
o caractere '\n'
continuará entre os bytes que serão escritos no buffer.
Observe:
#include <stdio.h>
#define BUFMAX 10
int main(void) {
char buf[BUFMAX];
printf("Digite até %d caracteres: ", BUFMAX - 1);
fgets(buf, BUFMAX, stdin);
printf("%s\n", buf);
return 0;
}
Executando o programa:
:~$ ./a.out Digite até 9 caracteres: 123456789 123456789 :~$ ./a.out Digite até 9 caracteres: 12345 12345 :~$
Quando eu executei o programa pela primeira vez, eu digitei exatamente 9
caracteres e a quebra de linha (inserida com o Enter
) não chegou a ser lida
por fgets
.
+------+------+------+------+------+------+------+------+------+------+ buf[10] | 0x31 | 0x32 | 0x33 | 0x34 | 0x35 | 0x36 | 0x37 | 0x38 | 0x39 | 0x00 | +------+------+------+------+------+------+------+------+------+------+
Mas, na segunda vez, eu digitei apenas 5 caracteres e teclei Enter
, totalizando
os 6 caracteres lidos por fgets
. Sendo assim, a quebra de linha final também foi
escrita no buffer e impressa.
+------+------+------+------+------+------+------+------+------+------+ buf[10] | 0x31 | 0x32 | 0x33 | 0x34 | 0x35 | 0x0A | 0x00 | lixo | lixo | lixo | +------+------+------+------+------+------+------+------+------+------+
Pode parecer um inconveniente se estivermos lidando com a digitação de linhas no
terminal, mas não remover o caractere '\n'
faz todo sentido quando estamos lendo
linhas de arquivos!
De todo modo, nós podemos criar uma função para remover a quebra de linha, se for o caso:
void trim_string(char *str, int size) {
int i = 0;
while (i < size && str[i] != '\0') {
if (str[i] == '\n') {
str[i] = '\0';
break;
}
}
i++;
}
Se estiver entrando com um buffer muito grande, o tipo de
size
pode ser alterado parasize_t
(unsigned long int
).
No nosso exemplo, a função trim_string
poderia ser utilizada assim:
# include <stdio.h>
#define BUFMAX 10;
// Remove a quebra de linha final do buffer...
void trim_string(char *str, int size);
int main(void) {
char buf[BUFMAX];
printf("Digite até %d caracteres: ", BUFMAX - 1);
fgets(buf, BUFMAX, stdin);
trim_string(buf, BUFMAX);
printf("%s\n", buf);
return 0;
}
// Remove a quebra de linha final do buffer...
void trim_string(char *str, int size) {
int i = 0;
while (i < size && str[i] != '\0') {
if (str[i] == '\n') {
str[i] = '\0';
break;
}
}
i++;
}
Compilando e executando novamente:
:~$ ./a.out Digite até 9 caracteres: 12345 12345 :~$
E o conteúdo do buffer seria:
+------+------+------+------+------+------+------+------+------+------+ buf[10] | 0x31 | 0x32 | 0x33 | 0x34 | 0x35 | 0x00 | 0x00 | lixo | lixo | lixo | +------+------+------+------+------+------+------+------+------+------+
Retorno nulo ambíguo
No caso de sucesso, a função fgets
retorna o endereço do buffer ou NULL
,
no caso de um erro, ou se o fim do arquivo for alcançado sem que algo seja lido
(por exemplo, ao ler um arquivo vazio ou numa leitura interativa cancelada com a
combinação de teclas Ctrl+D
).
Como você pode ver, o significado do retorno NULL
é ambíguo, mas isso só será
uma preocupação se estivermos lendo arquivos. De todo modo, nós podemos testar
o que aconteceu com as funções feof
e/ou ferror
.
feof(FILE *stream)
- Testa o estado do indicador de fim de arquivo (0 = não difinido
).ferror(FILE *stream)
- Testa o estado do indicador de erros (0 = não definido
).
Se isso for relevante, nós podemos chamar a função fgets
desta forma:
#include <stdio.h>
#define BUFMAX 10
int main(void) {
char buf[BUFMAX];
if (fgets(buf, BUFMAX, stdin) == NULL) {
// Só preciamos testar se o retorno for NULL...
if (feof(stdin)) {
// Se feof() retornar algo diferente de zero...
fprintf(stderr, "Fim de arquivo alcançado.\n");
} else if (ferror(stdin)) {
// Se ferror() retornar algo diferente de zero...
fprintf(stderr, "Erro de leitura.\n");
}
return 1;
}
...
return 0;
}
Conversão para números
Diferente da função scanf
, fgets
apenas lê caracteres e escreve num buffer
como uma string (caracteres terminados com '\0'
). Isso significa que, se
estivermos interessados em valores numéricos, os bytes no buffer terão que
ser tratado, geralmente em três etapas:
- Remoção da quebra de linha, se houver uma;
- Conversão para o tipo desejado;
- Validação do resultado segundo o tipo;
Nós já falamos sobre a remoção da quebra de linha, então podemos nos concentrar nas duas etapas seguintes. Porém, os métodos de conversão mais comuns já integram alguma forma de validação (geralmente, como retornos). Sendo assim, vamos nos concentrar no que pode ser feito para obter os tipos esperados.
Conversão para inteiros com 'sscanf'
Provavelmente, a forma mais simples e direta para converter o conteúdo
de um buffer para tipos numéricos é com a função sscanf
:
char buf[BUFMAX];
int i;
fgets(buf, BUFMAX, stdin);
sscanf(buf, "%d", &i);
Aqui, se houver dígitos válidos no começo de buf
, eles serão convertidos
em seu correspondente inteiro na base 10, exatamente como seria feito
lendo uma entrada digitada no terminal com a função scanf
– e com suas
mesmas limitações:
- A dificuldade de detectar entradas inválidas (por exemplo,
42abc
seria casado e convertido para o inteiro42
); - O retorno será apenas a quantidade de casamentos com a string de formato
que forem convertidos e escritos nas variáveis, ou
EOF
, no caso do fim do buffer ser alcançado antes de um primeiro casamento ou no caso de um erro; - Não oferece uma detecção de erros detalhada, como com as funções que
alteram a variável
errno
.
Além disso, sscanf
não lida bem com valores fora dos limites do tipo de
destino, por exemplo:
#include <stdio.h>
#include <limits.h>
int main(void) {
char str[] = "9999999999";
int i = 0;
sscanf(str, "%d", &i);
printf("Valor de INT_MAX : %d\n", INT_MAX);
printf("Dígitos na string: %s\n", str);
printf("Valor convertido : %d\n", i);
return 0;
}
Neste exemplo, o comportamento de sscanf
é indeterminado, mas compilaria
sem erros:
:~$ gcc -Wall teste.c :~$ ./a.out Valor de INT_MAX : 2147483647 Dígitos na string: 9999999999 Valor convertido : 1410065407
Aqui, 9999999999
é convertido para um valor com 5 bytes (0x02540be3ff
),
dos quais, apenas os 4 últimos cabem no espaço do tipo int
(0x540be3ff
),
resultando no valor 1410065407
.
Conversão para inteiros longos com 'strtol'
A função strtol
converte a parte inicial de uma string para long
de
acordo com a base de numeração indicada. O endereço do primeiro caractere
inválido é atribuído a um ponteiro – e isso nos dá uma excelente forma
de controle da conversão.
Simplificadamente, este seria o protótipo da função:
long strtol(char *str, char **endptr, int base);
Exemplo:
#include <stdio.h>
#include <stdlib.h>
int main(void) {
char str[] = "1234567abc";
char *end;
long i = strtol(str, &end, 10);
printf("Valor convertido : %ld\n", i);
printf("Primeiro caractere inválido: 0x%02x\n", *end);
return 0;
}
Compilando e executando:
:~$ gcc -Wall teste.c :~$ ./a.out Valor convertido: 1234567 Primeiro caractere inválido: 0x61
O caractere
0x61
éa
, na tabela ASCII.
Outros detalhes:
- No caso de valores maiores que o limite máximo de um inteiro longo,
o retorno será
LONG_MAX
. - No caso de valores menores que o limite mínimo de um inteiro longo,
o retorno será
LONG_MIN
. - Em ambos os casos, a variável
errno
recebe o valor deERANGE
(valor fora da faixa do tipo). - Se o valor for inválido para a base de numeração,
errno
recebe o valor deEINVAL
(valor inválido para a base). - A descrição do erro em
errno
pode ser impressa com a funçãoperror
, chamada logo apósstrtol
. - Se não houver dígitos e caracteres válidos no começo da string,
o endereço do primeiro caractere inválido será o mesmo da string
e a função retornará
0
. - O ponto negativo de
strtol
é que o retorno élong
e, se precisarmos de um valorint
, teremos que verificar os limites máximo e mínimo do valor convertido.
Outras funções de conversão
strtoll
- Idêntica astrtol
, mas converte paralong long int
.strtod
,strtof
estrtold
- Funcionam comostrtol
, mas convertem paradouble
,float
elong double
, respectivamente, sem a passagem de uma base de numeração.atoi
,atof
eatol
- São muito simples, mas devem ser evitadas pela falta de validação e de meios para tratamento de erros.